sexta-feira, 31 de março de 2017

Outros poemas de Ivo Pereira


Pátria


O regato acorda cedo.
As folhas descendo a ladeira
São as lágrimas da serra
Que choram molhando o campo.
O verde abraça um rio pequeno
Com sua bandeira branca de sede.
Minas tem costas altas e quentes,
Minas tem mãos reluzentes.
As montanhas da terra são mães grávidas
Esperando os filhos santos e heróis
Mortos pela guerra de subir na vida.


Da velha cidade


As pedras duras
Na rua de pedra
As pedras na rua
São as duras pedras.
As pedras pontudas
Na ponte de pedra
São penas que Deus
Soprou na terra.
As pedras das casas
São pedras cansadas
Protegem as virgens
Fantasmas da noite.
As pedras raras
Dessas igrejas
São pedras sagradas
Sustentam o pecado
Da velha cidade.


Sertaneja
a Ituiutaba


A cidade
À beira de um rio.
Um rio sujo
Esconde a cidade.

I-rio, e rio do rio.
Tuiu-povo, to you,
Cidade.
Taba, casa de índio.

Cidade do povo do rio,
O rio do povo da cidade,
O povo da cidade do rio.

O ouro dos caiapós
Espalhados no Pontal.
O pasto dos animais
Nas ruas dos números.

As profecias
De Zé do Óleo,
Fatos e verdades,
Poder dos currais.

Mãe adotiva,
Puxões de orelhas,
Mulher caipira
Currais do poder.

A cidade no leito
De um rio lamacento
Dorme sonhos eternos


Rosário


A árvore resiste
Com o tempo:
Os cupins comem
O ouro dos escravos.

O vento derrubou
Os martírios no chão:
Escorrem lágrimas
De seus galhos secos.

Reviver uma árvore
Não é como
Ressuscitar a fé.

Replantar a fé,
Não é como
Plantar uma árvore.

Um dia a mão tombou
O teatro da sociedade.
O tempo comeu lentamente
A pedra-sabão da alma.


Paisagem mineira


Os profetas andam
Por cima dos muros de Minas.

Cantam os hinos calados
Desse meu Brasil,
Os meninos negros de Minas.

Nas paredes das casas velhas
Está escrito que Minas vive
Presa pelas correntes
Desse meu Brasil,
Os meninos negros de Minas.

Por entre os mistérios de Minas
Anjos de barro guardam
O destino desse país.

Sinos gritam os seus hinos
Das pedras de Minas
Nesse meu país.

Existe uma tristeza imensa
Nas ruas caladas de Minas.
A solidão do poeta morre
No silêncio eterno desta canção.
Poemas de Ivo Pereira


Quadro de verão


O amarelo do trigo
confunde o raio do sol.
O azul do céu
reflete
os olhos dos versos.
Uma árvore na solidão do campo:
uma pintura impressionista
na tessitura de cores e flores.
Nascem imagens puras
na ponta dos dedos.
Uma moça na paisagem
com uma sombrinha aberta
pingo de tinta
no pincel borrado do pintor.
Namorados abraçam a solidão.
Um corvo voa com gritos
a buscar o resto
de semente no chão.
A paisagem pintada
faz Van Gogh renascer
na transparência da poesia.


Santa ceia mineira


Um balde sobre a mesa
Pede posta a ceia insossa.
Sobre a tábua há garfos longos,
Pratos fundos e vazios.

A fatia do pão de gergelim
Foi cortada com o punhal do traidor.
O vinho tinto foi servido em copos de cristais
Banhados com raminhos de urtiga.

E alguém pediu cachaça com imburana
E fumou um cachimbo político
E comeu um bife podre com sangue.

A carne assada foi servida a rigor
No prazer eterno do pecado e da dor.
Dizem que os anjos comem peixes


Quintal


Cortaram as goiabas brancas
Do meu pequenino quintal.
Deixaram somente as verdes
Morrendo com as podres no chão.
Os galhos secaram tristes no sol
Minha infância sangrou no facão.

Os pedaços da vida azeda
Que eu comi com os olhos:
São muitos os doces frutos da terra
E os frutos da terra são doces eternos.

Queimaram o pomar encantado do poeta
E deixaram na alma a cor seca do carvão.

Podaram as flores da primavera
E mataram o fruto quase maduro.
Não se esqueceram de amassar
Com as mãos as raras sementes.


Lágrimas barrentas


“Vale, vida, verde, verso e viola”,
canta o violeiro
nos encontros e nas festas
pelas estradas vermelhas.

Vale o rio de areia branca,
quanta dor Jequitinhonha.

O tropeiro
com entulhos de tralhas,
o berrante solitário
chama a boiada.

A canção da terra,
a poeira nos olhos cansados,
sem ouro e nem diamante,
gente sofrida
na vida
no tempo
e na história.

O rio chora
águas sujas,
a chuva não cai
nos montes sem árvores,
a sede sufoca
a goela vazia,
lágrimas barrentas
na alma do povo.


Milho Verde


Igreja do Rosário
delicado cemitério
fascinante paisagem
a sombra do Itambé
arbusto rasteiro
mágico momento
lá no horizonte
a primeira estrela.
Lajeado vai para o mar
sempre-viva
sempre bela
sabiá canta a manhã
por do sol
abraça a vida.
Lá no céu
de muito longe
estrela cadente
grama verde
casa calhada
mãos sofridas
paredes de tabatinga
telhas antigas
um belo sonho
olhos de anjo
no silêncio profundo
encantado lugarejo.
Poemas escolhidos de Ivo Pereira



A mão e a poesia


A mão que afaga
um livro
amacia o coração.
A mão que amacia
o coração
afaga a alma.
A mão que absorve a arte
abraça o mundo.
A mão 
que molda o mundo
recria o universo.


Escalas emocionais


Há em mim um violão
dolorido
vibrando cordas tensas
quando sente sua ausência,
a mesma ausência.
assimilada por Drummond.
Há um instrumento em mim
que pulsa,
reclama,
solitário,
mas é bom tocar pra você,
disse Caetano numa canção.
Há uma nota em mim
que me faz egoísta
quando amo a mim
na solidão das madrugadas
mais do que a você.
Há uma melodia
suave dentro de mim:
seu andar,
seus passos,
são acordes dissonantes
que quebram meu ritmo,
sua voz me faz falta,
mas não posso obrigá-la
a estar sempre perto
de meu confuso amor.
Há uma vibração em mim
que pede mais sol
em meu corpo frio.
Há um desejo em mim
que busca um sonho
do lado esquerdo do peito -
disse outro poeta -
pautado em notas ascendentes.
Há uma música em mim
que toca minha alma
e cai em si
quando você não ouve
as batidas aceleradas
do frágil coração
do velho poeta
quando te vê passar
com cabelos ao vento.


Sem título


Se eu tivesse que levar
Para uma ilha deserta
Quatro coisas eternas:
Levaria seus olhos verdes,
O sol sobre as montanhas,
Uma laelia purpurata
E um livro de Drummond,
Para que nas pedras,
Nas árvores e no tempo
Ficasse seguro gravado
O mais puro sentimento
De reter para a eternidade
O belo de todos os séculos.


Arraial do Tijuco


Por entre
Os caminhos de Minas
Passando pinguelas e rios
Subindo montanhas e serras
Moças belas nos casarios.

A brisa nos lampiões
Sereno pousando na terra
Fogueira branda no quintal
Serestas e violões
Nas noites do Arraial.

E Diamantina
Brilha
À luz da Estrela Guia,
Lua clara,
Noite vadia.

E a menina esconde,
Brilho do ouro
Diamante,
Pedra rara,
Fada brilhante.

A deusa musa guarda
No coração dos homens
A sina de ser
A pedra mais rara

Que brilha nesta canção.
Outros poemas de Ivo Pereira



Toques


Elogiei seus cabelos sedosos
suas unhas bem feitas
esmalte discreto
belo pé
pequeno amuleto
higiene pessoal
perfeita
boca desejo
lábios grossos
grandes lábios
corpo delgado
vestido sensual
abaixo do joelho:
- Poxa, que coxa!
Segurei sua mão
delicadas mãos
cheiro bom de creme
pele macia
dedos longos e finos
de pianista
imensos olhos ovais de jabuticaba
adoro a fruta
chupo até o caroço
sorriso de gelar o olhar.
Toquei
sua alma,
mas não toquei seu sexo
e nem seu coração,
toquei
levemente sua face rosada,
mas não era amor.


 O uivo da loba


Vou ali assistir a lua
na imensa tela plana de Deus, 
nos olhos escuros da noite
de bonde com o infinito...
naquela noite silenciosa. 
no impressionante céu,
mesmo com neblina,
sereno e frio
sobre as montanhas
fiz amor com você
de madrugada
lá na caixa d'água
de Diamantina...
não estávamos sozinhos,
as estrelas piscavam pra gente
e a lua cheia,
grávida de poesia,
repleta de sentimento
iluminava nosso amor
e foi belo ouvir você
uivar pra lua
naquele momento.


 Minas, verde, pedra, poesia



Fazer amanhecer as manhãs em Minas
É abortar o canto dourado dos galos.
Mas a luz sozinha não tece a poesia
Da manhã rara das claras colinas.

Minas acorda cedo e faz amor com o sol,
Veste seu véu branco de virgem pura
E vai buscar no horizonte a sede de luz.

Minas não é pedra adormecida
No esquecimento da história.
É a prata dentro da pátria
Que independente busca vitória.

A Minas do poeta novo
É a mesma do mestre Rosa
Que sabe o segredo da roça
Sagarana pátria do povo.

O poeta é aquele silencioso sonhador
Que no seu sonho de silêncio
Aprofunda-se no silêncio de pensador.

Minas é obelisco sagrado
Que as tribos da terra
Louvam em secreta comunhão.

Minas é abismo profundo
Que o mineiro esconde calado
Por entre os vales do mundo.

Minas é Minas somente
Terra desconfiada de tudo
De tudo desconfiada da gente.
Pode não dizer a verdade,
Mas mentir ela não mente.

Minas é mato
Que o mineiro conhece bem
E que o vaqueiro espalha no pasto.

É preciso não ver só Minas
Porque além existem outras terras
E além de outras terras existe
Um regato profundo de poesia.

É preciso não ver só Minas
Nos versos soltos das rimas
Nas rimas soltas dos versos
Nos versos brancos das minas.
Poemas de Ivo Pereira


Outra paixão
é a lua,
lua nua,
lua crua
que o poeta come todos os dias
como se fosse um queijo do Serro, 
delícia imaterial.
Olho a lua
e lembro-me da infância
quando falavam que São Jorge morava na lua 
e que lá existia um dragão,
eu olhava e não via São Jorge e nem o dragão, 
falaram que a lua era furada feito um queijo,
eu olhava e não via os furos da lua 
e nem o queijo
e todas as noites eu comia a lua 
com meus olhos de menino faminto.



“A beleza é breve”, 
dizem os japoneses
 
embaixo de suas árvores floridas de cerejeiras:
em março,
 
o inverno se vai
 
com o branco da neve e o frio.
 
A primavera chega,
 
dando cor
 
à paisagem do Japão,
em Diamantina entrelaçadas pelos granitos,
as quaresmeiras e os ipês
 
colorem a paisagem mineira.
Mas a beleza da cidade
 
está encravada nos olhos abismados do poeta,
o centro com seus amores
e os arredores com suas flores,
 
a beleza da musa dos diamantes
é permanente,
não existe brevidade
na beleza,
porque mesmo por um momento,
ela é eterna até mesmo em sua fragilidade.
Lá nas grimpas da poesia,
existe uma cidade delirantemente dos sonhos,
tão bela quanto Veneza,
só que em cima de um rio de pedra.
Quando vier a Diamantina,
venha em silêncio,
pois as fadas rondam os becos
em noite de frio
e os anjos
velam a cidade
com a luz da fascinação.


Luz difusa sobre a casa velha
abraçada por folhagem
 
num beco escuro
 
de uma cidade antiga.
A silhueta da lua na noite sombria,
refletida na parede corroída pelo tempo,
revela o casario que se desmancha com a história,
um vento fugidio
serpenteia entre os becos
 
passa velozmente seus dedos,
 
leves dedos de ladrão de cabelos.
 
A moça bonita balança os macios cabelos pretos
 
sob a sedução do vento,
 
aquele mesmo vento atrevido
 
que arrepiou a pele da moça bonita.
 
Morro de ciúmes do vento,
 
mas o vento não é tímido
 
feito o poeta que fica de longe
 
e deixa o vento abusar de suas musas.
 
Vento, desgraçado vento!


Pequenos gestos



Pra bom entendedor
aquele que entende a dor
meio verso basta
meia lua
inteira
meio sorriso
largo
moderato
meio olhar
de gelar a alma
um pingo no livro
é beijo.
O Ivo viu a uva
ovo
e uva boa.
A vida
é um desejo
poeta ri à toa.



Mago


 O ser mago
o ser amargo
a cegueira
o mago ser
o amargo ser
o ser tudo
o sal amargo
o amargo sal
sara o ego
o ego salva
Sara má, go!
O ser todo

Saramago.