quinta-feira, 15 de maio de 2014

Seis poemas de Ivo Pereira do livro Rabiscos marginais



Vazio


O eco
da voz abafada
do homem,
o cio
que a mulher come
com as unhas da dor,
o asco
pegajoso
do sêmen
água sanitária
pingando
entre suas pernas,
momento tardio
de rasgar o hímen,
alucinado vazio
no frio da poesia:
Domingo à tarde.


Noturno


É noite simplesmente:
Um carvão rabisca o ar.
E amarga a chance
De ver a lua cheia
Sugar a essência
De um poeta admirado
Pela musa negra
O ser abismado
Ser noturno
Come com os olhos
De um sonhador
A negritude da poesia
Se o poeta é parte
Integral do todo
Partícula de uma estrela
O que pisca no infinito
É a alma de um poeta
Que virou astro
De fascinação.



Sono


Já é de madrugada nessa noite escura e tenebrosa de agosto. A Rádio Eldorado diz que Tóquio está nublado. Aqui em Ituiutaba chove uma chuva mansa, dessas de fazer pobre dormir e sonhar com o destino. Num quarto ao lado Tio Néca ouve a Rádio. O locutor comenta a vitória do Cruzeiro. Dizem que sou um sofredor, um pobre pecador. A chuva pinga suave. O medo acaba com o assunto. Morfeu passa correndo e bate o sininho do sono, acariciando os cabelos enrolados do menino que segura com medo as mãos assustadora da noite escura.


O galo não acordou a manhã
(O dia que o poeta raptou o grito da madrugada)


Nesse dia não nasceu a manhã.
Somente o silêncio acordou vazio.

Havia apenas aquela sensação
Estranha no ar. Deslumbramento:
O galo não cantou na direção do dia.

Comentavam nas estradas
Que um violeiro
Já cantava aquela melodia.

Nesse dia não nasceu a manhã.
Ninguém mais ouviu o som do amanhecer.
Somente o silêncio acordou vazio.


Vida besta


Palmatórias doloridas
puxões de orelhas
joelhos no milho
cascudos de irmãos
banhos na bacia
piolhos e lêndeas
nos cabelos de miojo
Natal sem presente
Ano Novo sem festa
Férias sem viagens
pouca comida
nas panelas enferrujadas
barrigas vazias
sem água no bairro
escola pobre
aluno medíocre
pobreza não é pecado
cidade guilhotina
sociedade de merda
rotina com esterco
roupas sujas
conga encardido
chão batido
casebre de latas
paredes frágeis
buracos no telhado
tempos de incertezas
caminhos sinuosos
momentos de tristeza
vida besta.



Novos tempos




Papéis amassados com poemas medíocres rabiscados na solidão, quadros velhos nas paredes, teto com teia de aranha e piso de terra batida. Estante de tábua, livros de contos e poesias. Móveis rústicos e pesados, luz de lamparina, nariz preto de fuligem, alma leve, tênis molhado no chão, espelho quebrado. Pôster de uma modelo morena nua, camisas rotas e sujas, calças desbotadas e camisetas furadas pelas traças. Violão velho no canto calado, troféu de madeira, imagem de santa desconhecida e baratas procurando abrigo. Ratos andando nas telhas mofadas, música sertaneja, gente na rua rindo e conversando alto. Cachorro latindo e vaca berrando ao longe no curral, galo anunciado a madrugada e trovão no céu escuro. Reflexo de relâmpagos pelas rachaduras do telhado, carro buzinando na rodovia e a tevê gritando na vizinha. Ideias que brotam a cada instante na visão do poeta. Um rádio anuncia a eleição de um novo presidente e o povo comemora pelas ruas a democracia no país. Foguetes explodem com a liberdade. Pernilongos zunem no ouvido com a falta de luz. Um grilo afina seu reco-reco dentro do ouvido enchendo o saco da inspiração

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